Coronavírus além da Força Maior: Impactos nos Contratos
Por: José Roberto Martins e Caroline Gonçalves
Fica cada vez mais claro que o novo coronavírus afetará não somente a saúde de pessoas em dezenas de países, mas contaminará empresas, cadeias globais de fornecimento, câmbio, juros e mercados financeiros ao redor do mundo. Uma crise econômica se avizinha. Como o Direito tratará do assunto no plano das obrigações e contratos?
Nas primeiras semanas do ano, quando ainda não se tinha uma clara visão da extensão do COVID19, era natural classificar o evento como força maior, vale dizer, fato imprevisível que impede a execução de obrigações por uma das partes.
Contudo, à medida em que o vírus se espalha desde a Ásia a todos os demais continentes, que causa o isolamento de milhões de pessoas e rompe cadeias mundiais de suprimento, a solução pela força maior pode não ser mais suficiente. O turista que tem seu voo cancelado por conta da epidemia tem direito a receber de volta todo o valor pago? E se essa restituição se tornar sistêmica, a ponto de causar a falência das empresas de turismo? O fornecedor que sofre custos adicionais de produção está obrigado a entregar o produto pelo preço original?
Em situações de rupturas sistêmicas, a solução de se alegar força maior pode ser insatisfatória e não sustentável a médio e longo prazo. Seria como “empurrar” para a outra parte o ônus por um risco que ninguém havia previsto, prejudicando a sociedade como um todo, incluindo os consumidores que poderão acabar por ter de suportar produtos e serviços com preços mais elevados no futuro.
Uma outra solução jurídica pode revelar-se mais adequada a tais situações. Ela não tem nada de novo: foi desenvolvida pelos antigos romanos, aperfeiçoada pelos franceses, e tem sido aplicada pelos tribunais brasileiros há décadas, especialmente em momentos de crise. É conhecida como a Teoria da Imprevisão e foi formalizada pelo Código Civil Brasileiro de 2002.
Deixemos aos doutrinadores e à jurisprudência as melhores definições sobre o tema. Neste pequeno artigo, direcionado a quem não opera com o Direito, basta dizer que tal solução pode ser aplicada a “acontecimentos extraordinários e imprevisíveis”. Os tribunais têm admitido “acontecimentos extraordinários” aqueles “não cobertos objetivamente pelos riscos próprios da contratação”, vale dizer, riscos que que não eram inerentes ou naturais ao negócio entabulado (REsp nº 860277 / GO (2006/0087509-3).
Verificada situação, o Código Civil entende que não se pode condenar o devedor a assumir um ônus excessivo pelo evento, nem conceder ao credor uma “vantagem excessiva”. A lei permite à parte onerada pedir a resolução (término) do contrato (art. 478). Alternativamente, pode-se pedir para o juiz corrigir o valor da prestação, quando houver “desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução” (art. 317). A parte pode pleitear, também, a redução do valor da prestação, ou a modificação do modo de execução da obrigação, de modo a evitar a onerosidade excessiva (art. 480). Por sua vez, o próprio credor poderá evitar a resolução contratual, propondo modificar o contrato original, de forma “equitativa” (art. 479).
Sob o ponto de vista das relações de consumo, é importante também que consumidores e fornecedores ponderem caminhos alternativos visando à manutenção do contrato de consumo, ao invés da imediata rescisão e possível judicialização. O Código de Defesa do Consumidor tem como um de seus princípios basilares a harmonização entre os interesses dos participantes da relação de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios constitucionais nos quais se funda a ordem econômica.
Merece destaque ainda a recente Nota Técnica Nº 2/2020 emitida em conjunto pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, Ministério da Economia e Ministério da Saúde com orientações sobre o impacto do COVID-19 no setor de transporte aéreo e hoteleiro, ao determinar que o caso fortuito e fora maior devem ser fundados em evidências e em provas, não podendo se basear em mera alegação de risco, dependendo o pedido de cancelamento ou alteração da situação específica do país de destino. Bem aplicada, a solução de repactuar e reequilibrar obrigações pode ser uma boa “vacina” para restabelecer a saúde das partes e a continuidade dos negócios, buscando-se a negociação e métodos alternativos de solução de conflitos ao invés da judicialização. O caminho judicial (ou arbitral) pode ser longo ou caro; antes de iniciar uma boa disputa, cabe sempre tentar a repactuação amigável, ou a mediação, instruída pelos parâmetros aqui mencionados.